Olhou, através da cortina puída e velha, as centenas de cabeças enfileiradas, pendulando sobre seus ombros e ansiando o início da peça. Virou-se em direção ao camarim improvisado com caixas e paus, onde se encontravam seus colegas atores. Todos apreensivos, era a estréia, seus corpos trêmulos à expectativa do sopro divino de palmas ou, horror!, o bafo ígneo das vaias. Julien aproximou-se do grupo com passos suaves, não deveria haver barulho, cochichou com alguém a respeito da platéia repleta. O drama começava antes do espetáculo.
Todos, que ali estavam, eram amadores, "quase profissionais" para os mais vaidosos. Ensaiaram exaustivamente durante meses. Cada um dissera o seu texto centenas de vezes, o grupo trabalhava em perfeita ordem, uma verdadeira máquina. Estavam confiantes na perfeição até uma hora antes da estréia. Então seus sentimentos se aguçaram, as veias e artérias alastravam faíscas pelo corpo, a memória começara a se fragmentar, o espírito quebrantara-se e o drama transmutara-se em tragédia.
O roçar dos fios entrelaçados no abrir das cortinas era barulho altíssimo. O buraco da quarta parede abriu-se e mostrou sua face negra. Julien, no meio do palco à mostra, vagarosamente, caminhou três passos para a frente. As luzes quentes do cenário faziam arder sua vista e suar o seu pescoço. Teria que levantar o braço direito na primeira cena e recitar um breve monólogo, mas não conseguia, a mão pesara como uma bola plúmbea suspensa por um cordão. Tentou mais uma vez. Não. Não conseguira. O primeiro texto que deveria ser declamado de imediato não achava saída de seus lábios.
Julien afobara-se. Parado como uma estátua de louco demente, sonso como um débil mental, ofegante como um asmático, nervoso como um virgem num bordel, vacilante como um bêbado, idiota como um palhaço sem graça. O que estava fazendo ali? Hein, seu filho da puta? Por que está aí? Não deveria estar fazendo algo útil? Por que a palma de sua mão não se mexe? Julien, delicadamente, em um insignificante, mas estupidamente difícil mover, apurou seu olhar para baixo. Se alguém houvesse ao seu lado sentiria o calor úmido que seu corpo emanava neste esforço. O sangue subira num impulso explosivo e caía vertiginosamente deixando um rastro geladíssimo, estava desmaiando.
A mão levantou-se, seu corpo não queria cair, precisava se agarrar a algo e instintivamente agira sem qualquer ordem mental ou espiritual. A natureza em Julien o salvara, milhões de anos como macaco não foram apagados em míseros dez mil anos. A alma sucumbira, estava caída no chão poeirento do palco, mas o tronco, braços e pernas mantiveram-se rijos perante a saraivada de olhares da platéia.
O seu personagem começara a falar e sentir, pode se dizer que Julien tornara-se um espectador de si mesmo, não havia vivalma que não acreditasse em todas as palavras ditas, em todos os sentimentos exalados e até mesmo no castelo real feito em papelão e guache. As moças suspiravam, os homens admiravam. A inquietação em ver cenas tão sublimes e vazias de tudo que é falso agitava a todos. A atuação do corpo desalmado de Julien era o sol no teatro, irradiava uma sinceridade que trespassava as mímicas medíocres dos outros atores compondo um belíssimo espetáculo.
Ao fim, palmas, ovação, bravos! e assobios. Os atores, humildes, agradeceram ao público. Julien mal respirava, o cansaço não lhe deixava absorver as delícias da glória, gritavam seu nome, seus parentes e amigos orgulhosos levantaram-se, gesto imitado pela platéia restante. Mais tarde, a trupe esvaziava o palco, enquanto Julien esperava mais um pouco, contemplava o espaço vazio do teatro em adoração reservada e secreta. Em lentos passos, foi ao camarim onde seus colegas o aguardavam. Ao entrar, caiu de joelhos. Estava cansado, feliz e temeroso. Nunca conseguira atingir a beleza daqueles momentos. Chorou copiosamente com um grito de dor. Os outros assustaram-se, não haviam conseguido?, não fora uma noite magistral? Eles não sabiam que o que Julien sentia era a revelação de que fora iluminado nesta noite, luz que a muito poucos é permitido ver e emanar. Chorava porque percebera também que vivera sempre em sombras, porque aquele brilho o havia tocado a primeira vez, e talvez a última.
Wesley de Castro Dourado Cordeiro