Tuesday, September 26, 2006

Continho

A música que sai da caixa sonora do computador me enternece. Estou tentando, em vão, digitar algo que preste, mas não consigo. Não tenho talento para digitar, muito menos para escrever, só me resta usar o mais sujo dos golpes: o plágio. Vou, e estou plagiando a realidade. O som de Mozart em ritmo animado alegra a minha solidão de artífice (medíocre) das letras. Afinal para quê estou escrevendo? Acho que é para distrair-me de meus pensamentos.

As imagens saltam no oco de meu crânio: Responda! Responda! Responda! - Diz o professor de artes cênicas ao aluno perguntador. Responda! – a linda atriz imita o mestre alucinado. Vejo-me numa roupa de pierrot remendada dançando na beira de um pires gigantesco que gira sem parar sobre o dedo da bailarina. Se a música consegue deixar a vida mais bonita, o que ela não faz com os sonhos...

O gigantesco livro de direito olha-me com seus mil olhos fechados, cada um querendo invadir a minha cabeça. Não há nenhuma poesia nele, e isso me deixa triste. Chopin concorda comigo martelando o seu piano: "Sim, sim, sim". Monossílabos musicais inebriando-me num requiém melancólico. Mas José Afonso da Silva declara-me guerra, e somente em estado de guerra a pena de morte existe, chego a ficar assustado. Seu dogmatismo é tão grande que quase me tira o ânimo de escrever. Vade Mecum, vade retrum!

Um quarteto de parágrafos me parece de bom tamanho. A pedra que lapidei está assumindo a face de um monstro engraçado que me ri. Vazio de alma e de sentimentos, é só símbolo, que talvez somente a mim tenha significado. Jogo então ao mar das cores, coisas, cafés e cigarros o peso de pluma dessas palavras ocas. Vai-te dentro de sua garrafa alcançar uma sereia princesa que tenha conchinhas em seus cabelos encaracolisos e diz em bom som que lhe inventei uma palavra, um neologismo!, porque as mais simples coisas não sei dizer.

Wesley Cordeiro

Monday, September 18, 2006

Luzes e sombras

Olhou, através da cortina puída e velha, as centenas de cabeças enfileiradas, pendulando sobre seus ombros e ansiando o início da peça. Virou-se em direção ao camarim improvisado com caixas e paus, onde se encontravam seus colegas atores. Todos apreensivos, era a estréia, seus corpos trêmulos à expectativa do sopro divino de palmas ou, horror!, o bafo ígneo das vaias. Julien aproximou-se do grupo com passos suaves, não deveria haver barulho, cochichou com alguém a respeito da platéia repleta. O drama começava antes do espetáculo.


Todos, que ali estavam, eram amadores, "quase profissionais" para os mais vaidosos. Ensaiaram exaustivamente durante meses. Cada um dissera o seu texto centenas de vezes, o grupo trabalhava em perfeita ordem, uma verdadeira máquina. Estavam confiantes na perfeição até uma hora antes da estréia. Então seus sentimentos se aguçaram, as veias e artérias alastravam faíscas pelo corpo, a memória começara a se fragmentar, o espírito quebrantara-se e o drama transmutara-se em tragédia.


O roçar dos fios entrelaçados no abrir das cortinas era barulho altíssimo. O buraco da quarta parede abriu-se e mostrou sua face negra. Julien, no meio do palco à mostra, vagarosamente, caminhou três passos para a frente. As luzes quentes do cenário faziam arder sua vista e suar o seu pescoço. Teria que levantar o braço direito na primeira cena e recitar um breve monólogo, mas não conseguia, a mão pesara como uma bola plúmbea suspensa por um cordão. Tentou mais uma vez. Não. Não conseguira. O primeiro texto que deveria ser declamado de imediato não achava saída de seus lábios.


Julien afobara-se. Parado como uma estátua de louco demente, sonso como um débil mental, ofegante como um asmático, nervoso como um virgem num bordel, vacilante como um bêbado, idiota como um palhaço sem graça. O que estava fazendo ali? Hein, seu filho da puta? Por que está aí? Não deveria estar fazendo algo útil? Por que a palma de sua mão não se mexe? Julien, delicadamente, em um insignificante, mas estupidamente difícil mover, apurou seu olhar para baixo. Se alguém houvesse ao seu lado sentiria o calor úmido que seu corpo emanava neste esforço. O sangue subira num impulso explosivo e caía vertiginosamente deixando um rastro geladíssimo, estava desmaiando.


A mão levantou-se, seu corpo não queria cair, precisava se agarrar a algo e instintivamente agira sem qualquer ordem mental ou espiritual. A natureza em Julien o salvara, milhões de anos como macaco não foram apagados em míseros dez mil anos. A alma sucumbira, estava caída no chão poeirento do palco, mas o tronco, braços e pernas mantiveram-se rijos perante a saraivada de olhares da platéia.


O seu personagem começara a falar e sentir, pode se dizer que Julien tornara-se um espectador de si mesmo, não havia vivalma que não acreditasse em todas as palavras ditas, em todos os sentimentos exalados e até mesmo no castelo real feito em papelão e guache. As moças suspiravam, os homens admiravam. A inquietação em ver cenas tão sublimes e vazias de tudo que é falso agitava a todos. A atuação do corpo desalmado de Julien era o sol no teatro, irradiava uma sinceridade que trespassava as mímicas medíocres dos outros atores compondo um belíssimo espetáculo.


Ao fim, palmas, ovação, bravos! e assobios. Os atores, humildes, agradeceram ao público. Julien mal respirava, o cansaço não lhe deixava absorver as delícias da glória, gritavam seu nome, seus parentes e amigos orgulhosos levantaram-se, gesto imitado pela platéia restante. Mais tarde, a trupe esvaziava o palco, enquanto Julien esperava mais um pouco, contemplava o espaço vazio do teatro em adoração reservada e secreta. Em lentos passos, foi ao camarim onde seus colegas o aguardavam. Ao entrar, caiu de joelhos. Estava cansado, feliz e temeroso. Nunca conseguira atingir a beleza daqueles momentos. Chorou copiosamente com um grito de dor. Os outros assustaram-se, não haviam conseguido?, não fora uma noite magistral? Eles não sabiam que o que Julien sentia era a revelação de que fora iluminado nesta noite, luz que a muito poucos é permitido ver e emanar. Chorava porque percebera também que vivera sempre em sombras, porque aquele brilho o havia tocado a primeira vez, e talvez a última.

Wesley de Castro Dourado Cordeiro

Wednesday, September 13, 2006

Miralbela

Eu, que já andava meio embriagado naqueles tempos, de repente, me sentia feliz. Noites a queijos e vinhos sempre me aumentaram o brilho nos olhos, diziam. Eram, na certa, naqueles momentos de imensas e desavergonhadas gargalhadas que me teimava em acender sempre mais um cigarro – e um atrás do outro. E o amor? Ah, o amor! Esse não me faltou enquanto que tivesse a coragem e o desassossego de muitas vezes me apaixonar. De todas as paixões que eu pudesse de vir a ter, em todas algumas mais vidas, essas outras não haveriam de se me entranhar mais forte de como me achei ao ver Mirabela. Foi apenas o que bastou, exatamente isso(!), apenas o que bastou – um simples olhar e eu estava perdido para sempre...

João Paulo Gabriel de Castro Dourado

Friday, September 08, 2006

Smoking Ring

Um prolongamento da vida. Pensou enquanto bebia um vinho suave barato num copo de extrato de tomate. – Vou tomar banho! – disse ela. Parou por um momento, mas seus sentidos tonteavam o seu corpo. Num balançar nervoso levantou-se do sofá. Foi em direção ao televisor, pegou o maço de cigarros. Ah! Acendeu um. O tempo corria lentamente. Delicada, a fumaça dançava rumo ao teto com curvas sensuais que se espalhavam, o olor de hortelã do tabaco evocou-lhe lembranças.
Por quê? – uma lágrima. - Por quê? Não sabia qual resposta buscava. Com os olhos fechados sorveu mais um gole. O barulho do chuveiro. O barulho da chuva num dia quando tinha dezessete anos. A calça jeans molhada arranhava seus joelhos e o algodão do uniforme escolar colava em seu peito magro de pele e ossos. Corria. A casa de portão azul estava perto. Os pingos da água gritavam em uníssono: Vamos! Corra! – não existiam pensamentos, só velocidade e instinto. Quase tropeçara num paralelepípedo solto.
Ali estava, logo à sua frente. Sua corrida terminava. O coração, como nunca, começara uma batida desenfreada, os nervos trepidaram seus braços. Mas que droga, agora que chegara não podia desistir! Bateu à porta, chamou pela menina.
A camisola, um pequeno tecido branco e brilhoso, cobria e descobria, o que a ele era a lenha de uma existência febril. Ao abrir a boca, explodira tudo o que tinha escrito secretamente, que tinha desejado em sonhos acordados. As palavras sob a torrente da chuva eram estilhaços de sua súbita declaração.
Ela, estática, escutava os não contidos clamores. Seus pés pequenos, raízes presas no chão. De repente vergara seu caule-corpo, seus galhos-braços abriam-se e sua copa-boca verde-carmim roçava os seus lábios. Tremenda primavera infinita sob a chuva.
Até mesmo agora, nesse presente triste, a emoção e a incredulidade de tal felicidade ter-lhe acontecido naquela tarde de janeiro embriagava-lhe mais que o vinho. Aquela que estava ao banho era outra mulher. Esta realidade entristecera-o, por que não era a sua primeira paixão primaveril? À tona de sua memória vieram vestígios de momentos ruins. Instantes de brigas e discussões. Mas que merda! Nada era perfeito. Ligou o som, Claire de Lune. Fechou os olhos cansados e tentou evocar, em vão, aquela chuva novamente. O chuveiro foi desligado e a flor daquele beijo, percebeu, morrera há trinta anos e seu perfume póstumo dissipou-se nos anéis de fumaça do último cigarro.

Wesley Dourado Cordeiro